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Fui uma criança que leu muito. Tinha exemplo leitor em casa. Acesso a livros. Livros que chegavam pelos representantes do Círculo do Livro, o clube de leitura da época. Tinha a Biblioteca Hans Christian Andersen, no bairro do Tatuapé, aqui em São Paulo, a um quarteirão de casa. Ia tanto a essa biblioteca que nem sempre tinha quem me levasse, e me lembro do dia em que passei a poder atravessar a Avenida Celso Garcia sozinha: “o semáforo precisa estar vermelho para os carros… olha pra um lado, pro outro e, quando não houver nenhum carro em movimento, nem de longe, você atravessa”. No começo eu hesitava, mesmo quando todos os carros estavam parados. Esperava o semáforo fechar uma e outra vez. Mas eu estava indo à biblioteca, quem iria me impedir?

Com 12 anos de idade fui morar no interior, em Salesópolis (SP), e, no meu bairro, só havia a pequena biblioteca da escola municipal em que eu estudava. Uma parede de livros. Em poucos meses dei conta dos títulos que havia ali, até os mais chatos. Mas eu lia de tudo: revistas, jornais, o que aparecesse, até me desinteressar.

Não me lembro muito bem quando decidi cursar Jornalismo. Passei em uma universidade pública, a Unesp de Bauru (SP), e saí de casa pra estudar. Fiz estágio, me formei, trabalhei como jornalista. Mas não estava muito feliz. Era para estar, não era? Até que surgiu uma oportunidade de trabalhar como revisora de texto: me encontrei. Trabalhar com livros era a minha cara. Pude aprender muito com gente muito boa. Fui até fazer faculdade de Letras. E sigo aprendendo.

O tempo foi passando, e comecei a trabalhar também como preparadora de texto. Depois como editora. Depois como coordenadora editorial. Com literatura. Com livros de receitas. Com material didático. Com paradidático. Estamos em 2020, dezoito anos se passaram desde minha entrada no mercado editorial. E, nesse tempo todo, nunca havia revisado, preparado, editado ou coordenado a produção de um livro de autoria preta. Até eu abrir minha própria editora.

De acordo com uma pesquisa realizada ao longo de 14 anos e publicada no livro Literatura Brasileira Contemporânea: um território contestado, de Regina Dalcastagnè (Editora Horizonte: UERJ, 2012), 93,8% dos autores publicados à época, no país, eram brancos, e 72% eram do sexo masculino.

Se isso não é um completo e revoltante absurdo, eu não sei o que é. Não há interesse em diversificar as narrativas. E, quando há (os 6,2% restantes, destinados a todos os não brancos), uma boa parcela parece estar de olho apenas em um filão de mercado, e não em uma sociedade verdadeiramente antirracista e diversa.

Trabalhando, li textos deliciosos, obras incríveis, bem escritas e elaboradas, que me divertiram, me transportaram para outros mundos e me levaram a muitas reflexões. Como os livros da minha infância. Mas, assim como acontecia com os livros da minha infância, esses textos não costumavam incluir representatividade preta.

Por vezes apontei em alguns textos nos quais trabalhava passagens machistas, racistas, homofóbicas. Mas no final das contas seus autores eram tudo isso mesmo. Então para que mudar? Não adianta mudar só o texto.

Sim, sim, nem todo escritor blá-blá-blá… Ponto pacífico. Mas não é (só) disso que estou tratando aqui: estou trazendo à baila que, da mesma forma como os livros da minha infância, os livros nos quais trabalhei nos últimos 18 anos não trouxeram histórias pretas. Personagens pretas com protagonismo positivo. Por meio do ponto de vista de pessoas pretas. Ingratidão? Lógico que não, também sou a favor da diversidade, do respeito à diversidade, mas de verdade! Só que isso praticamente não existe, o desequilíbrio é evidente.

Certa vez, trabalhando com material didático, depois da já comum repetição de “não dá para, nas imagens, os homens brancos estarem sempre nas posições de médico e advogado e as mulheres negras, nas de faxineira ou merendeira”, ouvi um: “Lu, já troquei aquela foto lá, hein?!”. Como se estivessem fazendo um favor. E um favor pra mim, não para a sociedade!

A história do nascimento da Aziza Editora não é resultado de herança patrimonial nem de um dom ou sonho descoberto na mais tenra idade. É resultado de uma urgência. É urgente que as crianças pretas e não pretas e que os adultos pretos e não pretos tenham acesso às histórias e às culturas pretas, formadoras, sim, da nossa sociedade, por mais que muitos queiram apagá-las. Histórias e culturas riquíssimas e complexas, que não começaram com a escravização de nossos corpos e não se restringem a isso.

E como tem sido bom poder contar com minhas irmãs e meus irmãos pretos nessa construção!